Em 'O Estado de S.Paulo'
Por Christian Carvalho Cruz
ENTREVISTA / RICARDO ANTUNES
A não ser em seus livros, em que analisa com acidez marxista as transformações do trabalho e suas implicações na vida cotidiana, o sociólogo Ricardo Antunes, da Unicamp, tem dificuldade de contar a dura verdade a um trabalhador. Certo dia lhe telefonou uma funcionária do banco querendo saber por que ele não pagava contas pela internet. "Porque eu não lido bem com tecnologia", Antunes disfarçou. A moça insistiu dias depois. "Porque eu não confio na internet", foi a segunda resposta que ela ouviu. Só no terceiro contato o sociólogo abriu o jogo: "Porque eu não quero que você perca seu emprego."
É justamente do trabalho no admirável mundo imaginado pelos entusiastas da era digital que trata seu novo livro, a coletânea de ensaiosInfoproletários - Degradação real do trabalho virtual (lançado pela Boitempo). Organizada em parceria com o também sociólogo Ruy Braga e com lançamento previsto para o dia 26 de outubro, a obra faz um recorte preferencial pelos operadores de telemarketing e trabalhadores de call center, expressões máximas da atual precarização do trabalho, segundo Antunes. Contudo, na entrevista a seguir, o sociólogo envereda também por outros desdobramentos da nova realidade, na qual ele vê poucos motivos de celebração. "Não é possível que o século 21 transcorra com essa destruição do trabalho em escala monumental sem que algumas `placas tectônicas´ se movimentem - e eu não estou falando de geofísica, obviamente", ironiza. "A história está aberta para qualquer tipo de saída.
"Eis o infoproletário"
O proletariado não acabou, ao contrário do que muitos previram e desejaram. Ele se transformou. O livro é uma tentativa de compreender essa transformação. Infoproletariado, ou ciberproletariado, são termos que compreendem uma ampla gama de trabalhadores que floresceu nas últimas três décadas e meia a partir do aumento do uso da tecnologia da informação, da globalização e da degradação das condições de trabalho. Esse triplo processo originou um tipo de proletário contraditório. Ele é de ponta, moderno, porque usa tecnologia avançada, mas é atrasado, porque herdou condições de trabalho vigentes no início do século 20. Analisar esse fenômeno é ir além do invólucro místico de certa sociologia segundo a qual a tecnologia traria para o trabalho o admirável mundo novo. Talvez fosse mais correto falar em abominável mundo novo.
"Mais completa tradução"
O operador de telemarketing é a expressão mais completa de infoproletário. Um trabalhador sob controle absoluto. Ele fica isolado em baias de modo que não converse com o colega do lado, tem tempo contado para ir ao banheiro, é punido se não cumpre metas e, como na indústria fordista, faz um trabalho prescrito e repetitivo levado ao limite. Um quadro de sofrimento e sujeição totalitária. Em franca expansão mundial, os call centers são, obviamente, importantes empregadores de jovens. Mas até eles percebem a tragédia em que se encontram. Em poucos meses não suportam o emprego, mas não podem sair, pois lá fora a opção é o desemprego. Sintomático que antes do início da jornada diária os teleoperadores se reúnam em um momento de concentração, com música agitada, palavras de ordem, etc. É o seu momento catártico para enfrentar a barbárie que virá.
"E aí, parceiro..."
O infoproletário não se rebela. Afinal, ele não é um trabalhador, ele é um `colaborador´. Eis uma engenharia ideopolítica das empresas, nascida nesse novo mundo do trabalho. Elas precisam da aquiescência e do envolvimento dos trabalhadores para tê-los só pensando nelas. No seu jogo de palavras, um colaborador não é parte da classe operária, não se sindicaliza, não pensa em política. Colaborador é parceiro, quase sócio. Por isso até almoça no mesmo restaurante dos gestores. Como, por definição parceria implica ajuda mútua, na bonança ou na tragédia, eu pergunto a essas empresas: por que o seu colaborador é o primeiro a ser penalizado em tempos de crise? Estamos diante de uma falácia, logicamente.
"Voluntário não, obrigado"
É o caso também da chamada web 2.0, em que os indivíduos são `convidados´ a colaborar com empresas de internet. Há uma utilidade social clara nisso, não nego: o cidadão pode dividir com outros cidadãos quaisquer informações que julgue importantes. Porém, há um segundo elemento, que é o capital se aproveitando de mais uma brecha para gerar valor. Como no trabalho voluntário, mais uma forma de mascarar a autoexploração. Ao procurar emprego hoje você estará em desvantagem se não mostrar no currículo que fez ou faz trabalho voluntário. As empresas valorizam isso. Mas se você tem que fazer trabalho voluntário para conseguir um emprego, então ele se tornou trabalho compulsório. No Brasil existem perto de 20 milhões de trabalhadores voluntários. É evidente que eles substituem 20 milhões de assalariados que estariam recebendo para realizar um trabalho agora feito por voluntários que são obrigados a sê-lo. Que coisa...
"Home office"
Outro desdobramento do cibertrabalho é o trabalho à distância, o melhor dos mundos para o capital. Você trabalha em sua casa, onde o público e o privado se embaralham: como não há definição do que é trabalho e do que é descanso, a jornada se estende. Você fica sempre disponível e pode ser incomodado a qualquer hora por questões de trabalho, afinal você não está só em casa, está também no escritório. A noção de tempo desmorona com a vida privada. É uma nova modalidade de precarização permitida pela tecnologia. O pior é que virou tendência, essa é a nossa tragédia. Sou capaz de compreender o lado positivo do trabalho a distância para certo tipo e trabalhador que dispõe de `capital cultural´ e acha bom ter controle sobre o próprio tempo. Mas o inverso disso é a individualização, o isolamento, o fim do trabalho coletivo e a quebra dos laços sociais.
"Terremoto social"
O avanço tecnológico atual é tamanho que poderíamos trabalhar tranquilamente três horas por dia durante três ou quatro dias por semana. Todos produziríamos e viveríamos bem. Mas como realizar isso nesses tempos de sociedade que vive em plena superfluidade? As pessoas precisam ir ao shopping, consumir sem parar, mesmo sem saber o quê nem pra quê, não é mesmo? Alguma coisa está fora de ordem. E não é possível que o século 21 transcorra com essa destruição do trabalho em escala monumental sem que algumas `placas tectônicas´ se movimentem - e eu não estou falando de geofísica, obviamente. Cinco anos atrás quem diria que os Estados Unidos tomaria medidas estatizantes para impedir a falência de seu sistema financeiro? Quem diria que no modelo imaginado peloamerican way of life o essencial automóvel se tornaria também moradia da classe média? A história está aberta, inclusive para saídas ainda mais à direita."
Fonte: Contraf/CUT
É tudo verdade. Enquanto lia o artigo do Ricardo Antunes, parece até que eu estava diante de um espelho que refletia a minha vida e a vida de meus colegas de trabalho no banco. Obrigado afbepa por publicar este texto tão importante.
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